sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

"Jesuis" - que se fale de Je Suis Charlie e dos muçulmanos


O humor é uma provocação. Tira-se sarro daquilo que se deseja mudar - ou até mesmo banir. O humor tem autorização prévia para refletir, como um espelho, aquilo que nos tornamos com o passar do tempo.

Há diversos níveis de humor: os que contribuem, os que atrapalham. Para dar exemplo: Chaplin riu de Hitler, Chico Anysio riu dos mais humildes. Rir de quem tem força ajuda a pensar sobre o porquê dessa pessoa ter força; rir de quem é fraco incentiva apenas a que fracos não percebam que são fracos, pois juram que são diferentes - são "potenciais fortes".

Eu vi as charges do jornal francês. Francamente falando, são charges que incomodam o mundo islâmico, afinal, qualquer tipo de representação de Deus é proibida; mais que isso, muitas vezes Deus (se preferirem, Alá) era posto em situações homossexuais passivas. Particularmente, acredito que se possa fazer desenho pornográfico de outras coisas. Não ficou claro pra mim qual o objetivo delas. Certas charges parecem ter a importância de um filme de Chaplin; outras, parecem ter sido feitas por Danilo Gentili num momento em que ele estava com disenteria e uma prancheta. O que se pretendia? Rir do "outro", o muçulmano, numa Europa cada vez mais xenofóbica? Criticar a homofobia, num mundo cada vez mais intolerante? Fazer a charge e forçar a reclassificação do periódico para maiores de 18 anos? Em fato, pode-se dizer que as charges são desnecessárias (e concordo com isso!), mas algumas coisas não estão me deixando feliz.


A primeira delas: não se pode achar racional que se atribua a morte às charges. "Quem mandou brincar com religião?", perguntam aos montes. É a mesma lógica do "foi estuprada por andar com roupa curta", já que atribui à vítima o motivo da violência sofrida. Deve-se perguntar, entretanto, por quê a sociedade está cada vez mais repleta de indivíduos incapazes de lidar com a diferença.


A segunda: muçulmanos religiosos veementemente negam a violência contra inocentes. Não traz felicidades ver que já estão apontando os muçulmanos como vítimas, como se ações individuais pudessem falar por todos os que compartilham tal fé. Afinal, não faz sentido um ateu matar alguém na Austrália e um ateu na Índia ser mal visto por isso.

A terceira: não houve um massacre motivado por questões religiosas. É mais importante lembrar que morreram pessoas de extrema-esquerda e alguns muçulmanos, como policiais alvejados pelos atiradores. Podem dizer que os atiradores berravam que eram da Al-Qaeda. Desculpem, tendo em vista muita coisa estranha ocorrida neste mundo, gostaria muito de que eles tivessem provado tal pertencimento. Vai que...

A quarta: o que a Europa pretende criminalizando grupos islâmicos? Mesquitas foram atacadas e isso é tão grave quanto o que fizeram os atiradores, embora esteja sendo visto como uma "reação natural". Isso não é aceitável, é a pura barbárie. E isso é dito por um ateu que entende que o Estado não pode ter religião, mas as pessoas, sim.

A quinta: e se fosse no Brasil? E se deputados, como Bolsonaro, tivessem algum tipo de posicionamento favorável a um atentado contra um órgão qualquer da imprensa. Como seria a cobertura da mídia? Isso, sim, parece ser preocupante.

Em minha monografia de final de curso, acabei absorvendo leituras que abordavam o mundo árabe pelos seus próprios olhos. Dando um outro exemplo bem simples: as mulheres aparecem na TV brasileira, durante o carnaval, usando roupas mínimas ou mesmo nuas. Vende-se a ideia ao mundo inteiro de que todas as brasileiras são assim, inclusive fazendo do corpo feminino um item de atração ao turismo, apesar de eu nunca ter visto uma mulher nua em nenhum desfile (ou bloco carnavalesco) na minha cidade. Entretanto, passado o carnaval, não se vêm mulheres nuas na TV. É necessário respeitar a cultura alheia, principalmente levando-se em consideração que cultura nada mais é que um conjunto de códigos erguidos para manter uma relativa harmonia dentro da sociedade. Não à toa, os egípcios lançaram um código de leis, milênios atrás, que a tradição judaica absorveu e transformou em dez mandamentos (destaca-se o não matarás). Quer mais cultura que isso?

Por qual motivo o comentário de minha monografia? Tive a experiência de desenvolver, junto aos meus ex-alunos da Fundação Casa, um método de análise em relação a como a mídia influencia na formação de opinião coletiva. Destaco o seguinte trecho:

A pesquisa, de uma forma geral, revelou que o Oriente Médio ainda é visto como uma região (..) onde guerras e conflitos têm origem religiosa e existem graças à ignorância de uma parte da população que ali vive, os muçulmanos, termo que parece ter sido utilizado por eles (os alunos) como se significasse a fusão entre os árabes e a religião islâmica.
 (..)
O padrão de respostas oferecido por eles mostra que houve uma alteração pontual na forma como eles lembravam do Oriente Médio (antes de serem internados) e, depois de assistirem as reportagens  (durante as aulas na Fundação), em como eles compreenderam as informações presentes nas reportagens. O trabalho teve a oportunidade de comprovar as ideias de Edward Said, que, como  vimos ao longo do trabalho, afirma que há uma prática no mundo ocidental de tentar entender o mundo árabe, simplificando-o, sem dar a ele próprio a chance de se auto-definir. Essa simplificação acabou tendo eco nas respostas dos alunos, à medida que não associaram, em nenhum momento, a vida no mundo árabe à ideia de cotidiano que eles constroem quando pensam em outros lugares, como se a ideia concebida de vilania, inerente aos muçulmanos, não permitisse similaridades entre  eles e os alunos.

Em suma: tivemos um atentado, teremos um país chorando seus mortos, um Ocidente chocado com a barbárie que só é reconhecida junto aos muçulmanos, cuja imagem de violência e primitivismo será reforçada e nada será feito para apaziguar os ânimos (pelo contrário). Por fim, será visto algum partido político tentando obter vantagem do ocorrido.

Atualização: interessante postagem de Joe Sacco aqui.

Um comentário:

  1. Muito bom, Gustavo!
    Vejo que o legado será de todo negativo: oportunistas políticos se aproveitarão do incidente, cartunistas não se convencerão de que é preciso haver limite no humor, pois temem o fantasma da censura, sobretudo em países como o nosso que muito já sofreu com esse "cala a boca".
    A intolerância para com os muçulmanos aumentará e tornará suas vidas ainda mais difíceis em países como a França, EUA, etc.
    O mundo vai piorar mais um pouco. =(

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