sábado, 27 de dezembro de 2014

Putin movimenta suas peças

Ao final da Segunda Guerra Mundial, a Europa entrava em um novo cenário em que figurava como coadjuvante de duas superpotências, URSS (que travou uma guerra direta com os alemães) e EUA (que travou batalhas mais próxima à periferia da Europa, apesar do que insistam os filmes hollywoodianos). Estes países, de ideologias oficialmente antagônicas (socialismo, cujo núcleo reside na ideia de que os trabalhadores controlariam a produção, e capitalismo, respectivamente), tinham um poder bélico acumulado em condições anormalmente elevadas em tempos de Europa devastada e restante do mundo em vias de se descolonizar.

A Guerra Fria foi um período em que o conflito, por mais que se vislumbrasse no horizonte, não poderia se materializar. Dentro dos Estados Unidos, ao longo de décadas, criou-se a ideia de uma expansão soviética ameaçadora, motivo que fez com que, nas eleições internas, muitos políticos fossem eleitos e fizessem carreira prometendo ser contrários a qualquer relação amistosa com a URSS (cuja postura sempre foi a de expansão contínua, nunca a de expansão a qualquer custo). Alguém poderia perguntar o motivo pelo qual os dois países não se enfrentariam; para responder, basta ter em mente que uma guerra só é feita quando há certeza da vitória (as exceções foram as guerras mundiais) e quando a perspectiva de lucro no pós-guerra é superior aos gastos com ela em si. Nenhuma dessas condições foram atendidas ao longo das décadas e, à medida que a corrida armamentista se intensificava, mais complicada se tornava uma guerra aberta.



Existiram melhorias sociais em alguns países do centro do capitalismo, é verdade, mas as relações entre os países mostravam que, apesar de não serem mais colônias, muito da lógica se preservou. Se a União Soviética fez com que os países ocidentais regulamentassem sindicatos e direitos trabalhistas, por outro lado o modelo de Estado opressor foi copiado em áreas estratégicas (com a instalação de ditaduras apoiadas pelos Estados Unidos). A crise econômica dos anos 70 afetou os países do Terceiro Mundo (Argentina, México e Brasil), assim como a dos anos 80 fez o mesmo com os países do Segundo Mundo (então países que faziam parte do grupo socialista). Há quem aponte que a URSS teria acelerado sua deterioração econômica ao entrar no mercado internacional, ainda nos anos 70, com a venda de petróleo.

(Acima, a foto aérea obtida em um evento de 2014, quando iluminou-se as áreas onde o Muro de Berlim estava construído).

A crise dos anos 90, que deveria ter afetado os países desenvolvidos, foi adiada por conta da abertura de mercados junto aos países subdesenvolvidos e/ou da antiga área de influência soviética, o que fez muita gente supor o fim da Guerra Fria e tornou a palavra globalização um mantra de muitos agentes econômicos. Há algumas exceções óbvias, como o fato da China em nenhum momento ter afirmado que deixou de ser socialista - o papel do Estado na produção torna-se o núcleo de tal postura. Contudo, a China não ficou parada.
A nova rota da seda (imagem acima), projeto lançado pela China, demonstra uma integração muito grande entre China, Ásia Central e Báltico/Mediterrâneo. Note-se o papel central da Síria nesse projeto, o que talvez ajuda a explicar o porquê de Estados Unidos terem tanto interesse em trazer instabilidade ao país de Bashar al Assad. A guerra é apenas uma extensão da política..

Apesar da discrição do projeto, é importante perceber como a China tem ganho muito espaço. Em 1º de setembro de 2014, por exemplo, Rússia e China anunciaram a construção de um gasoduto entre os países (os dois já fazem parte do Organização de Cooperação de Xangai, organização que originalmente pretendia estimular a defesa mútua, e dos BRICS, grupo de países-emergentes que, no meio do ano, lançou um fundo próprio de investimento). A título de curiosidade, o negócio está estimado em 400 bilhões de dólares.

Ao mesmo tempo, a Ucrânia tem ocupado destaque na imprensa internacional (gosto desta análise), enquanto que a OPEP prefere não se incomodar com a redução no preço do petróleo, fato que prejudica a países como Rússia, Irã e Venezuela. Há de se lembrar que em 2014 os EUA se tornaram o maior produtor de petróleo do mundo, aumentando o estoque de petróleo proveniente de outros lados, mas não se deve descartar o peso político em tal valor.

Fora isso, a guerra de propaganda parece resgatar a ideia de "nós x eles", sendo o primeiro representante do bem e o segundo, do mal. Não se pode falar mais em Ocidente x Oriente, pois, vejam bem, o Brasil é um dos países mais receptivos do mundo todo (apesar de ainda termos que resolver algumas questões raciais internas). E, hoje, Brasil foi escancarado como aliado geopolítico russo, conforme o trecho abaixo, obtido aqui.
En cuanto a la colaboración internacional de Rusia, además de los socios tradicionales como la CEI, la OTSC, la OSCE y la OCS, la doctrina por primera vez en la historia de Rusia nombra a los BRICS; concretamente menciona "la ampliación de la cooperación con los Estados miembro de los BRICS, Brasil, la India, China y Sudáfrica".
A posição brasileira contra os EUA fica evidente quando, ainda neste ano, vê-se o Brasil protestar contra a espionagem, além de ter trazido duas estatais chinesas para explorar o Campo de Libra, importante reserva petrolífera localizada em nossa plataforma continental. (A Veja chamou de entreguismo, mas muita gente entende que não se pode explorar sozinho tal recurso e que a proteção deve vir com a entrada de outras potências em nosso litoral).

Algumas suposições sobre o porvir:
- a democracia está sendo posta em xeque, já que o homem comum, o eleitor dos países envolvidos, não tem interesse em apoiar entrega de armas ou apoio à guerra. Estaria a União Europeia disposta a sacrificar sua população em função de um apoio aos Estados Unidos? Ao que tudo indica, a elite europeia entende que isso é válido.
- Brasil, desde a década passada, tem debatido a compra de caças e porta-aviões e de tecnologia bélica (ora da França, ora da Suécia). Essa postura tem se tornado cada vez mais acertada.
- havia uma aproximação da Alemanha com o Brasil, a ponto de sair em um ou outro órgão de imprensa que o europeu pretendia integrar os BRICS. Essa aproximação parece ficar um pouco mais distante.
- assim como se pode dizer que as duas guerras mundiais foram apenas uma, com um intervalo para reorganização, pode-se dizer que a Guerra Fria também teve seu próprio hiato. Provavelmente ela só acabará com a fratura da Rússia (como se fosse uma nova Iugoslávia) ou dos Estados Unidos, cenários complicados de imaginar nas próximas décadas.
- e Cuba? Cuba será o porto de entrada para um mercado de alguns milhões de habitantes, além de ser muito utilizado por conta de seu relevo marítimo favorável a navios grandes. O setor produtivo interno é qualificado e barato e é bem capaz que o país torne-se uma mini-China.
- durante a Guerra Fria, a URSS teve muita dificuldade quando a China, isolada diplomaticamente, começou a se aproximar dos EUA, que já possuía uma área de exploração de recursos, o Brasil. Atualmente, o cenário mudou, com o Brasil estreitando relações com a China, que por sua vez tem se posicionado cada vez mais próxima à Rússia.

A guerra aberta entre Estados Unidos e Rússia, apesar de elucubrações complexas, não deverá existir por um motivo simples: ela não se mantém. Qualquer acirramento das relações faria com que os países se aniquilassem (supõe-se que, se os EUA explodissem ogivas nucleares na Rússia, em questão de minutos a radiação já estaria afetando os americanos).
Há tempos que o papel dos EUA, enquanto império, vem sendo questionado - os BRICS nunca cogitaram abrir negociações com o país. Esta posição parece cada vez mais ligada a esta movimentação da Rússia, que parece deixar claro que suas áreas de influência não estão abertas a questionamento.

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Uma recomendação aos amigos. Aqui, Noam Chomsky debate até que ponto a URSS teria sido de fato socialista, dado que os dois governos (Moscou e Washington) tinham interesses propagandísticos de afirmar isso.

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