sábado, 17 de março de 2012

David Harvey fala à Caros Amigos da crise capitalista e outros temas

“Não vejo que o capitalismo tenha um caminho claro para sair da crise. Mesmo se existisse esse caminho eu não acho que o pensamento que existe nos círculos políticos seria capaz de tomá-lo, em outras palavras, mesmo se ele estivesse lá eles não conseguiriam enxergar”. É com essa brincadeira que o marxista David Harvey resume a crise e as “soluções” políticas que vêm sendo tomadas para atravessar esse período de recessão global do capital que já se arrasta desde 2008 quando a crise do subprime, a quebra do Lehman Brothers e a debilidade de tantas outras grandes empresas multinacionais de origem estadunidense levaram o mundo para o buraco.

O geógrafo britânico e atual professor da City University of New York esteve em São Paulo na última semana para dar palestras na PUC (27/02) e USP (28/02) e conversou com a Caros Amigos sobre capitalismo, crise, política e seu livro recentemente lançado no Brasil pela Boitempo Editorial, O enigma do capital.


Direito à cidade

Uma das principais ideias que defende em sua trajetória intelectual e política é a luta pelo direito à cidade, não apenas como um direito das pessoas terem acesso ao que existe na metrópole (como serviços de transporte, saúde, etc.), mas também como um direito de participar da construção e transformação do tecido urbano, da forma que julgar necessário. Para Harvey, a questão central do direito à cidade é confrontar a dinâmica da urbanização que segue somente a lógica da acumulação capitalista. Esse tema será aprofundado em seu próximo livro, que terá a versão inglesa lançada no mês de abril e ainda não tem data prevista para chegar em solos brasileiros, o “Rebel cities: from the right to the city to the urban revolution” (“Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana”, em tradução literal), no qual defende que a reorganização das cidades pode ser o foco da resistência anticapitalista.

O tema soa mais latente ainda no atual momento pré Copa e Olimpíadas no Brasil, no qual assistimos ao remodelamento em uma intensidade cada vez maior do tecido urbano das cidades, como com políticas de higienização, favorecimento do mercado imobiliário e grande quantidade de despejos da população pobre de suas áreas habitacionais. O problema não é novo: "Vemos essa situação acontecendo antes de todas as Olimpíadas, foi assim na China, em Montreal, Roma. É um clássico desenvolvimento do Estado, uma desculpa para o que eu chamo de acumulação por despossessão”, define David Harvey, questionando: “A questão é: haverá resistência? E que forma tomará essa resistência? Isso cabe a vocês."

Atual estágio da crise

Se vivemos uma crise estrutural que se apresenta em escala global, ela se manifesta de diferentes formas ao redor do mundo. Na América do Norte e na Europa, seu sintoma principal tem sido as políticas de austeridade implementadas pelos governantes sob a justificativa de “um medo profundo, uma discussão quase histérica sobre a dívida”, como caracteriza Harvey.

O geógrafo explica que “a austeridade não ajuda nem um pouco a resolver a crise, só a torna pior. Muitas das instituições presentes nesses países também não ajudam a resolver a situação: o Banco Central Europeu (BCE), por exemplo, tem a obrigatoriedade por constituição de lutar contra uma inflação que não existe, mas não está fazendo nada para combater o desemprego”. Assim, a crise já se estende por 4 anos.

No emblemático caso grego, por exemplo, Harvey defende que a solução seria a declaração da moratória, o que quase certamente significaria a saída da Grécia da zona do euro, e, portanto, a criação de sua própria moeda, com baixa valorização. A analogia que usa é a de que os gregos estariam com um dente podre: “Ou eles puxam para fora e será dolorido por um ano ou dois, ou eles reclamam do dente estragado por mais 25 anos, que é o caminho que eles escolheram por enquanto”, comenta.

“[A moratória] seria muito difícil para a Grécia porque as altas classes gregas basicamente têm o seu dinheiro fora do país em euros, nos bancos da Alemanha e do resto da Europa”, observa Harvey. “As classes mais altas da Grécia se beneficiariam imensamente e o resto das pessoas passariam por um período bastante complicado”, admite, apesar de constatar que isso já está se passando e lembra que a Argentina passou por um processo parecido em 2002 “e em 2005 sua economia já estava funcionando bem de novo; o Uruguai também fez algo semelhante”.

Arrancar o dente

O professor ressalta, no entanto, que o que tira o sono dos governos e das instituições internacionais do mercado financeiro não é a Grécia. “Acredito que se fosse somente isso que preocupasse a todos, provavelmente até os próprios líderes europeus aceitariam arrancar o dente. O que os preocupa é que uma vez que isso aconteça com a Grécia, vai se passar também com Espanha, Portugal, Itália, chegando a quebrar toda a Europa”, alerta.

Se o quadro se apresenta dessa maneira na Europa e EUA, em outras partes do mundo o que acontece é uma rápida expansão econômica, particularmente na China, mas também vivenciada por nós brasileiros e a Argentina, entre outros países. “É uma política mais expansionista, você não ouve a palavra austeridade por aqui, você vê a preocupação com desenvolvimento, crescimento, investimento em infraestrutura”, define David Harvey, acrescentando que esse crescimento acontece como consequência da concentração da produção mundial na China: “a demanda de matérias primas básicas por parte da China está ajudando os países que fornecem essas matérias primas, como Chile e Austrália, a sair ou não sentir tão fortemente a crise”.

Para ele, o que vemos na China é a tentativa de substituir o mercado interno pelo mercado mundial. “O comércio chinês é movido pela exportação, o consumismo chinês é de apenas 35% da economia no país, enquanto nos EUA é de 70%, e acredito que há medidas para tentar aumentar o consumo na China que é provavelmente baseado na classe média”, expõe. “Os chineses deram a volta com um plano Keynesiano de investimentos em infraestrutura e com o aumento dos salários o mercado interno tem estado bastante forte”, opina.

Pois bem, e até quando a China poderá crescer? O que vai acontecer se o boom chinês entrar em colapso? “Eles têm especulação de propriedades acontecendo, uma grande bolha do mercado imobiliário muito parecido com a que os EUA tiveram 5 anos atrás, então imediatamente as demandas por cobre cairiam, as demandas por ferro e petróleo cairiam”, vislumbra Harvey, salientando que caso os EUA e a Europa não voltarem a crescer de alguma forma, a recessão global viria com toda a força. David não descarta a possibilidade: “Existe probabilidade de pelo menos 50% de que ocorra uma recessão global nos próximos 3 ou 4 anos”.

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